Insustentável Leveza

28.Nov.08 – 21h30
Teatro Cine de Torres Vedras
programa:

W.A. Mozart
Adagio e fuga em Dó menor k.426 e 546
(transcrição para dois violoncelos e piano de Mats Lidström)

N. Côrte-Real
Volupia, op. 42
(nova obra ESTREIA ABSOLUTA)

F. Schubert
Quinteto de cordas em Dó maior opus póstumo 163


notas ao programa

A invenção da melodia é o mistério
supremo das ciências do Homem.
Claude Lévi-Strauss

W.A. Mozart (1754-1791) e F. Schubert (1797-1828), apesar das diferenças evidentes que os separam, são dois compositores que têm algo em comum, algo que na sua intraduzibilidade poderíamos chamar (parafraseando Kundera) a insustentável leveza. Isto é, são capazes duma espontaneidade e ligeireza inigualável, e dotados duma inspiração melódica aparentemente fácil e inesgotável, mas sob a qual se desvela uma inquietação espiritual e uma dimensão transcendente de grande profundidade. Da sua música aparentemente mundana, simples, elegante e plena de lirismo, dimana uma beleza trágica que excede o humano, pondo-nos em contacto com algo que transcende o dizível. Mesmo nas suas composições mais trágicas, escritas necessariamente no modo menor, jamais está ausente a sensualidade mais voluptuosa, como se aí residisse a própria capacidade de transcender as misérias deste mundo. Além disso, é notável a milagrosa facilidade do processo de gestação das suas obras. Deles a música parecia jorrar ininterrupta, com uma fluidez assombrosa, sobretudo no final das suas curtas vidas. Silenciou-os uma morte precoce, cujo espectro já pairava, havia algum tempo, no seu espírito e nas suas obras. Lembremo-nos de D. Giovanni, do Requiem, ou das últimas obras vocais de Schubert como a Viagem de Inverno com a sua beleza gelada e desolada, ou o Canto do Cisne. No entanto, esse estado de graça, a sua facilidade, não teve necessariamente como correlato a fortuna da vida. Ambos conheceram a miséria e o sofrimento. Paradoxalmente, o reconhecimento explícito da sua estatura excepcional como músicos, entrelaça-se de forma inexplicável, com os sistemáticos fracassos na tentativa de integrarem organicamente a vida musical da cidade de Viena. Enquanto Mozart foi famoso em toda a Europa enquanto virtuoso, Schubert, que não era um virtuoso, foi conhecido unicamente por um círculo restrito de amigos artistas, às custas dos quais vivia. Dizia frequentemente que tinha a sensação de não pertencer a este mundo. A maior parte da sua obra só foi descoberta e tocada após a sua morte. Mas a adversidade não os impediu, pelo contrário, de procurarem na beleza suprema a fuga para um espaço ideal de comunicação com os homens e de contacto com o ser. É esta, pois, a insustentável leveza, ou talvez, a insuportável beleza que, pela força da sua verdade estética nos transporta além deste mundo, exprimindo a indizibilidade do absoluto.

Adágio e Fuga em Dó menor, K.546, escrito originalmente para cordas, foi composto em 1788 partindo duma fuga que Mozart tinha escrito há alguns anos para dois pianos, e à qual resolveu acrescentar um adágio em jeito de prelúdio. Esta obra magistral atesta bem o interesse que a música de J.S. Bach despertou em Mozart quando, já em Viena, a descobriu e a estudou, assimilando a técnica contrapontística à sua própria escrita. O adágio é uma peça intensa, percorrida por uma aura trágica quase fúnebre, na qual uma inusitada ousadia harmónica de agrestes dissonâncias criam um discurso de tensa angústia que vai alternando com momentos de distensão duma terna doçura, e que, finalmente, conduzem à fuga, de tema austero e majestoso.

Quinteto de cordas em Dó Maior, Op.posth.163, D.956, composto em 1828, no ano da sua morte é, tal como todas as suas últimas peças, uma obra maior, com uma nova e sumptuosa sonoridade em parte devido ao uso de dois violoncelos, em vez de duas violas como era hábito em Mozart e Beethoven, e que proporcionam uma escrita sinfónica e uma atmosfera de intensa gravidade. Apesar de estilisticamente seguir os modelos formais clássicos, sobressai a espontaneidade e o espírito poético, que se submete mais à intuição lírica e à sensibilidade harmónica, do que ao rigor construtivo de tipo beethoveniano. O seu instinto melódico-harmónico proporcionou uma série de inovações que apontam já para o romantismo. Dentro da obra, o segundo andamento destaca-se pelo seu fervor extático, pela intensa espiritualidade que o habita. É a essa beleza enigmática que, na impossibilidade de traduzir, chamamos a insustentável leveza.

Também na música de Nuno Côrte-Real (1971-) é possível encontrar esta insustentável leveza, sobretudo se o enquadrarmos no contexto da música contemporânea. O seu discurso dá-se todo na transparência, através da recuperação dos valores musicais perenes – melodia e ritmo – e da busca de uma expressividade clara. Sobrepondo o valor da escuta aos valores conceptuais a música reconquista a sua natureza sensível, instaurando-se como lugar de comunicação e emoção. Por outras palavras, Côrte-Real reabilita um tipo de discurso ancorado na percepção auditiva, no qual o prazer da escuta serve como porta de entrada para valores mais elevados, como uma etapa fundamental para alcançar uma plenitude espiritual. Deste modo, o poder de ressonância da beleza é insubstituível.

A obra aqui em estreia, Volupia, Op.42, propõe uma celebração musical do prazer, não só do prazer da escuta mas dos prazeres em geral, demarcando-se assim claramente das poéticas contemporâneas que procuraram abolir o hedonismo auditivo e consequentemente a possibilidade de comunicação. A palavra latina volupia (em português volúpia) refere-se à deusa do prazer, filha de Eros e Psique, servindo hoje para definir os vários tipos de prazer que comportam uma elevação espiritual. Há na própria palavra, e no seu poder poético de sugestão mitológica uma leveza insustentável. A composição parte de um acorde originário que vai sendo transformado por rotação, transfigurando a paisagem musical num pequeno caleidoscópio de imagens de volúpia.

Afonso Miranda


próximo concerto

CONCERTO DE ANO NOVO – ORQUESTRA DAS BEIRAS

DOMINGO, 11 DE JANEIRO DE 2009 – 18H00


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