A ARTE DO PIANO
concerto comentado por João Paulo Santos
29.Mai.09 – 21h30
Igreja da Graça – Torres Vedras


programa:


I. Stravinsky
Sonata para dois pianos
Moderato

Theme with variations: Largo
Allegretto

W. A. Mozart
Sonata para dois pianos em Ré Maior, KV 448
Allegro con spirito
Andante
Molto alegro

pausa

F. Schubert
Fantasia em Fá menor, Opus 103 / D. 940, para piano a quatro mãos

A. Piazzolla
Le Grand Tango


Ensemble Darcos
João Paulo Santos e Helder Marques piano

direção artística – Nuno Côrte-Real




João Paulo Santos e Helder Marques. Ensaio piano a quatro mãos.


Breves considerações sobre a arte do piano

O piano ocupa na história da música ocidental um lugar destacado, não só pelo seu magnífico reportório, mas também pelas variadas funções que desempenha em diversos campos da atividade musical, do ensino à composição, além da importante função social que o instrumento desempenhou. A importância do piano ultrapassa o próprio instrumento em si e o seu reportório. As suas potencialidades harmónicas, polifónicas e tímbricas, conferem-lhe uma versatilidade que o tornam num instrumento de trabalho indispensável para a generalidade dos compositores. Na sua maioria os grandes compositores foram, de facto, pianistas, e houve épocas em que a diferença entre o criador e o executante não tão era vincada como hoje em dia. Mas, mesmo os raros compositores que não produziram nada para piano, como por exemplo Wagner, essencialmente um compositor de óperas, encontraram no piano uma ferramenta de trabalho imprescindível, com ajuda da qual todo o tipo música podia ser composta, porque o piano é o único instrumento capaz de traduzir e controlar a textura completa da música ocidental.

Para os compositores pianistas, o piano foi o instrumento onde desde logo se exploraram as novas ideias, uma espécie de laboratório de experiências formais, harmónicas e estilísticas, que só depois eram ensaiadas nos géneros orquestrais e em obras sinfónicas. Para estes compositores o piano era o meio mais direto para a representação da sua personalidade artística e humana. Beethoven por exemplo, quando avançava por um novo caminho começava com a sonata para piano, e só depois se lançava na sinfonia e no quarteto de cordas. Podíamos acrescentar muitos outros casos, como Debussy, Bartók ou Schoenberg, cujas peças para piano funcionam muitas vezes como ensaios na evolução da sua linguagem. Acrescente-se ainda o facto de a maioria dos compositores pianistas terem sido exímios improvisadores. Hoje praticamente circunscrita ao jazz, a improvisação foi no passado um aspeto distintivo da arte do teclado. Um pianista era reconhecido basicamente pela sua capacidade de improvisar. Há que ter em conta também que o reportório do instrumento era, nesses tempos bastante mais reduzido e além disso a música que se praticava era, salvo raríssimas exceções, música da época, música nova. No que toca à improvisação, caso de Beethoven é paradigmático, muitas das suas grandes ideias surgiram de improvisações. Podíamos citar também Mozart e Schubert, compositores cujo estilo espontâneo e intuitivo deve muito à improvisação.

Nos finais do século XVIII e início do XIX os diferentes géneros musicais estavam mais compartimentados e desempenhavam diferentes funções sociais. A música pública reduzia-se basicamente à ópera, à sinfonia e ao concerto. A restante música tinha uma função privada ou semi-privada, na qual os aficionados e os amadores desempenhavam um papel importante. A música para piano era essencialmente doméstica, o executante tocava para si próprio ou para um pequeno grupo de amigos e convidados. Desde Bach, cuja obra para tecla tinha principalmente uma função pedagógica, até Schubert que representa como ninguém essa vivência intimista da música, o reportório para piano tinha uma função doméstica e destinava-se sobretudo aos aficionados. E neste terreno dominavam as mulheres. Muitas das obras para piano de Haydn, Mozart e Beethoven foram compostas especialmente para senhoras, algumas delas exímias executantes mas constrangidas pelas convenções sociais que não lhes permitiam seguir uma carreira. O grau de dificuldade das peças era, muitas vezes, determinado pela capacidade do intérprete a que se destinava. A venda de partituras ao público em geral era importante para o compositor, e as peças muito difíceis não se vendiam e os editores queixavam-se. Beethoven, porém, com o seu espírito rebelde tinha dificuldades em se submeter a limitações de qualquer espécie. As suas sonatas para piano alcançaram um nível superior na hierarquia dos géneros, hierarquia essa que tinha na sinfonia o exemplo da mais elevada verdade poética, da mais profunda sabedoria musical. Concebidas essencialmente como música privada as sonatas para piano de Beethoven constituíram o primeiro conjunto de obras pianísticas, pela sua seriedade e substância musical, adequadas para ser interpretadas em grandes salas de concertos, o que de facto viria a acontecer no final dos anos 30 do século XIX, quando Lizst institui o recital público.

Piano ao quadrado
Se a literatura original para piano a quatro mãos (seja em um ou em dois pianos) não é muito numerosa, passa imediatamente a ser gigantesca se nela incluirmos as transcrições e os arranjos. Desde a Paixão Segundo São Mateus de J.S. Bach até ao Fogo de artifício de Stravinsky, tudo existe em versão de quatro mãos. Desde o século XIX até meados do século XX, isto é, até ao advento das ondas hertzianas e posteriormente da gravação, o piano, quer a duas quer a quatro mãos, era o melhor meio de tomar contacto com o grande reportório, fosse ele de câmara, sinfónico ou operático, uma realidade que requeria dos melómanos uma competência musical efetiva.

A fundação do género sonata a quatro mãos deve-se, provavelmente, a Mozart (1756-1791). Em criança, durante as digressões que efetuou pela Europa enquanto menino-prodígio, Mozart apresentava-se por vezes com a irmã Nannerl, quer em um quer em dois pianos. Mais tarde o cultivou o género, deixando cerca de uma dúzia de obras, escritas quase sempre para serem tocadas com algum aluno ou aluna de destaque, em concertos semi-privados patrocinados pela família. É o caso da Sonata para dois pianos em Ré Maior, K.448, escrita para Josephine von Aurnhammer, aluna dileta de Mozart, para quem já tinha escrito o Concerto para dois pianos e orquestra em Mi bemol. A Sonata, a única para dois pianos, é uma obra bem conseguida, pela qual Mozart tinha um especial apreço. Composta em 1781, o ano da chegada a Viena, a obra está cheia de entusiasmo e reflete o otimismo vivido pelo compositor naqueles tempos. Escrita no estilo concertante, é uma obra brilhante e virtuosística, mas com um grande rigor de escrita. As partes conferidas aos dois instrumentistas são completamente iguais, reforçando o papel do diálogo e dos jogos contrapontísticos.
Schubert (1797-1828) foi o compositor que mais escreveu para quatro mãos, deixando, além de numerosas peças de salão, consideradas menores pelo seu carácter de entretenimento, algumas composições que estão entre o melhor que produziu. É o caso da Fantasia em Fá menor, D.940, Op.113, obra de grande profundidade emocional, intensidade e beleza lírica, bem como consistência formal. Escrita em 1828, a poucos meses da sua morte, a Fantasia pertence a esse grupo de obras testamentárias que compôs no final da vida, obras que são como viagens interiores, celebrações de dolorosa nostalgia, solidão e estranheza. A atenção que Schubert dedicou à música para quatro mãos reflete bem essa forma de viver a música em intimidade, o prazer de fazer música entre amigos. Esta postura representa o oposto da tendência virtuosista e exibicionista que no seu tempo começava a despontar. O piano de Schubert é um piano metafísico, um piano confessional, um piano poético. Ao contrário do virtuosismo, a sua música é mais para ser vivida, e portanto tocada, do que para ser escutada.

Com Stravinsky (1882-1971) estamos nos antípodas de Schubert. O piano de Stravinsky é um piano geométrico, objetivo, depurado da retórica eloquente e da incontinência expressiva do romantismo. É um piano rítmico, percussivo, seco. A atitude artesanal de Stravinsky reflete-se bem na Sonata para dois pianos, terminada em 1944, tem um estilo despojado e direto marcado pela tendência neoclássica, com abundante recurso a temas russos e um exemplar manejo da arte da variação. É um excelente exemplo de contraponto moderno e de politonalidade.

A formação clássica de Piazzola (1921-1992), bem como o seu interesse genuíno pelo jazz, contribuíram decisivamente para a reformulação do tango que levou a cabo, inovando-o nos aspetos tímbricos, rítmicos e harmónicos, e conferindo-lhe um inusitado prestígio artístico. O novo tango foi severamente criticado pelos mais conservadores, que achavam que essa música não era tango, ao que Piazzola respondia ironicamente que era música contemporânea porteña. Escrito em 1982, o Grand Tango, originalmente para violoncelo e piano foi dedicado a Rostropovitch, e é aqui apresentado num arranjo para dois pianos.
Afonso Miranda




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