MESTRE BACH
concerto comentado por Rui Vieira Nery
com projeção vídeo de Nuno Côrte-Real
sexta-feira, 5 de março, 21h30
Teatro Cine de Torres Vedras


programa:
N. Côrte-Real
Glosa Goldberg (para trio de cordas)
ESTREIA ABSOLUTA

J. S. Bach
Variações Goldberg (arranjo para trio de cordas de Dimitri Sitkovetsky)

Ensemble Darcos
George Hlawiczka – violino
Reyes Gallardo – viola
Filipe Quaresma – violoncelo



MÚSICA ESPECULATIVA

O legado monumental de J. S. Bach (1685-1750) representa, simultaneamente, o apogeu e a síntese do período Barroco. A sua obra tem uma dimensão enciclopédica e científica, e resulta num compêndio de práticas musicais que abrangem e sintetizam os 150 anos de vida musical que constituem o período barroco. À exceção da ópera, todos os géneros deste proteico período foram por ele abordados com insuperável mestria. O seu engenho e competência, a inteligência e a erudição musicais expressos, sobretudo, no invulgar domínio das técnicas contrapontísticas, são tanto mais notáveis se pensarmos que a sua instrução musical se realizou num modesto âmbito caseiro. Ao contrário, por exemplo, de Händel, viajado e cosmopolita, Bach nunca saiu da Alemanha, e aprendeu o ofício em família, com o pai e com o irmão, e, sobretudo, sozinho, estudando e copiando avidamente todas as partituras a que tinha acesso, apropriando-se e assimilando deste modo toda a variedade de estilos nacionais - italiano, francês e alemão – que deram origem ao seu próprio estilo, coerente e cosmopolita.
Apesar do seu génio e erudição serem reconhecidos no meio musical, o seu trabalho era, à época, considerado algo extravagante e antiquado, e em geral foi recebido com desinteresse pelos seus contemporâneos. Bach viveu nesse período de transição em que a sensibilidade ganha terreno em relação à razão, e o gosto galante clamava por simplicidade, sensualidade e inovação. À medida que o barroco se dilui nesta nova sensibilidade, Bach, em sentido contrário, mergulha progressivamente nas formas do passado, e penetrando na essência da suprema ciência do contraponto, leva a cabo, na última década da sua vida, uma série de composições nas quais é manifesta uma dimensão especulativa e sistemática. Desse legado fazem parte obras como O Cravo bem Temperado, as Variações Goldberg, a Oferenda Musical e A Arte da Fuga. Esta série de obras, às quais poderíamos acrescentar tantas outras, são inspiradas por considerações pedagógicas, por um zelo científico e por essa vontade de sistematização do saber que é tão característica do seu tempo. É preciso não esquecer que estamos na época das grandes construções racionalistas. Pense-se, por exemplo, nos sistemas de Leibniz ou Newton. Por outro lado, há que ter em conta que o conceito de música como mathesis, regida por fundamentos matemáticos, e a conceção do labor compositivo como equivalente a uma atividade científica eram ideias comuns naquele tempo.
Não devemos olhar para a obra de Bach segundo os critérios da estética moderna, que se desenhará somente a partir do final do século XVIII. Conceitos como originalidade, expressão subjetiva, inovação e até mesmo o conceito de obra de arte, não existiam ainda, pelo menos na aceção romântica que ainda hoje vigora. Bach encontra-se temporalmente nesse limiar entre o antigo e o moderno. A sua arte tem ainda vestígios da ars medieval, num sentido artesanal e simultaneamente de ciência. A música é essa matemática sensível com a capacidade de representar os afetos e as emoções. A partir do período Barroco, com o advento da ópera e da teatralidade, e o progressivo desvio da música do domínio sagrado para o profano, assiste-se a uma passagem gradual de uma simbólica do número para uma simbólica do sensível. Ao virar-se para a erudição das antigas formas polifónicas Bach está a inscrever-se numa tradição em que arte e ciência são equivalentes, encarando a arte como cosa mentale, em que a perfeição de uma obra advêm da sua adequação às regras estabelecidas pela tradição, e nesse sentido, a beleza surge como equivalente da verdade. Mas se nas suas obras especulativas o compositor é movido por considerações científicas, isto é, mais pela busca da verdade do que pelo prazer dos sentidos, é contudo necessário frisar que a música de Bach consegue, como nenhuma outra, aliar à poderosa racionalidade das construções contrapontísticas um forte sentido poético e expressivo.
Não é, portanto, a ideia de originalidade que está por detrás do labor sistemático dessas obras tardias. É antes a inventio, um princípio da retórica que, mais do que invenção, significa a capacidade de desenvolver e explorar determinado tema, descobrir - no sentido de desvelar, trazer a luz - as propriedades e as potencialidades que em cada coisa jazem ocultas. É este trabalho de profundidade que se manifesta invariavelmente na obra de Bach, mas sobretudo nessas obras de pendor mais abstrato e intelectual como a Arte da fuga, a Oferenda musical ou mesmo as Variações Goldberg, nas quais o compositor se propõe abordar exaustivamente todas as possibilidades oferecidas por um único tema.
À data da morte de Bach em 1750, o espírito do barroco estava praticamente extinto, e a sua obra, com exceção de algumas cópias manuscritas que circulavam em grupos restritos por influência dos filhos e de antigos alunos, permaneceu no esquecimento. Só a partir do começo do século XIX tem início um lento renascimento que culminará em 1850 com a fundação da Sociedade que levará a cabo a edição completa da sua obra, uma empresa gigantesca que só ficará concluída em 1900. Mas, por uma daquelas ironias da história, esse compositor considerado no seu tempo como anacrónico e antiquado, viria a tornar-se o compositor mais influente da posteridade musical, transformando-se num modelo, num paradigma, num mito ao qual os grandes compositores de todas as épocas regressaram. Pense-se nas últimas obras de Mozart ou de Beethoven, na recuperação do contraponto e a sua fusão nas formas clássicas. Pense-se em Schumann ou em Wagner com a sua melodia infinita e as suas texturas densas. Ou Schoenberg, Bartók e Stravinsky…Na verdade temos a sensação de que por detrás de cada obra que ilumina a história da música está a luz originária do pensamento do mestre Bach.
As Variações Goldberg, BWV 988, ou Ária com 30 Variações foram publicadas em 1742 e constituem o quarto volume dos Clavier-Übung (exercícios para teclado). Segundo Forkel, que escreveu a primeira biografia de Bach em 1802, as Variações foram escritas em 1741 para o Conde von Keyserling, embaixador da Rússia na corte da Saxónia, que tinha ao seu serviço um jovem cravista talentoso, Johann Goldberg, que tinha sido aluno de Bach, e que terá sido o primeiro a tocá-las. Tal como todas as suas obras tardias, as Variações obedecem a uma estrutura racional e coerente que reforça a intenção sistemática do empreendimento. É a linha do baixo, e não a melodia, que constitui o tema a partir do qual se vão moldar as 30 variações. Este tipo de variação a partir de um baixo ostinato vulgarmente chamada chaconne ou passacaglia é bastante comum no barroco. Insólita é a dimensão e a monumentalidade da obra, o tratamento exaustivo da arte da variação transforma a obra num compêndio das possibilidades de variação, desenvolvendo ao máximo o discurso contrapontístico, e abordando peças de diferentes géneros. O ciclo completo organiza-se por grupos de três variações em que cada uma aborda uma forma estilística diferente. Na primeira variação de cada grupo encontramos peças de caráter do género das que se encontram nas Suites, como a giga, sarabanda, abertura francesa, etc. A segunda variação está escrita em forma de polonaise, um tipo de peça virtuosística, geralmente em duas vozes, que servia de Estudo para os cravistas. Finalmente, a terceira variação de cada grupo é um cânone, uma técnica de imitação polifónica bastante rigorosa. Bach organiza os cânones por intervalos ascendentes de modo que a variação 3 é um cânone em uníssono, a variação 6 um cânone à segunda, a variação 9 um cânone à terceira, e assim sucessivamente até ao intervalo de nona. Na última variação, a nº 30, no lugar do esperado cânone à décima Bach introduz o chamado Quodlibet, uma brincadeira musical que consiste na fusão de duas melodias populares. O ciclo termina com a repetição da Ária inicial.
Afonso Miranda





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