LIRICAMENTE!

concerto comentado por Nuno Côrte-Real
26.jun.09 – 21h30
Teatro-Cine de Torres Vedras

programa:

L. Sp
ohr
Três Canções Alemãs op. 103 para soprano e piano
I. Sei still mein Herz
(O meu coração está calmo)
V. Das heimliche Lied
(A Canção secreta)
VI. Wach auf
(Acordar)


N. Rota
Sonata em Sol para viola e piano
I. Allegro moderato
II. Adagio
III. Allegro

N. Côrte-Real

“Dois momentos a Pessoa, com Pessoa” Op.1
para soprano, clarinete em Lá e piano


pausa

M. Bruch
Cinco Peças, op. 83 para viola, clarinete e piano
I. Andante
II. Allegro con moto

V. Rumanische Melodie (Andante)
VII. Allegro vivace, ma non troppo
VIII. Moderato

F. Schubert
Der Hirt auf dem Felsen (O Pastor nas rochas) para soprano, clarinete e piano
I. Andantino
II. Allegretto




Ensemble Darcos
Elsa Cortez – soprano
Reyes Gallardo – viola
Fausto Corneo – clarinete
Helder Marques
piano

direção artística – Nuno Côrte-Real



GENEALOGIA DO LÍRICO

O que significa a palavra lírico? O que queremos dizer quando afirmamos que um compositor é lírico? Desde logo fica por esclarecer se se trata de um adjetivo, de uma categoria estética ou de um conceito artístico. Indubitavelmente a palavra sugere uma pluralidade de sentidos que podem variar segundo os contextos, o tempo histórico a que se refere. Desde logo pode assumir uma aceção mais literal ou, pelo contrário, mais figurada. Se dizemos, por exemplo, que Rossini foi um compositor lírico, o sentido é literal uma vez que Rossini foi um compositor de ópera, sendo o lírico entendido aqui como a arte do bel canto. Mas se dizemos que Chopin é um compositor lírico o significado já não pode ser o mesmo, porque Chopin, como é sabido, só escreveu música para piano. Aqui lírico lê-se como um modo de expressão que privilegia a melodia como um veículo poético para a manifestação de sentimentos subjetivos. Por outro lado, pode-se dizer ainda que Wagner, que praticamente só compôs óperas, não é um compositor lírico. O lírico aparece aqui como o oposto de dramático, mas pode ler-se simultaneamente, como no exemplo de Chopin, como um sinónimo de melódico.
A palavra tem a sua origem etimológica na lira, o instrumento musical da antiguidade grega associado às figuras mitológicas de Apolo e Orfeu, e que servia para acompanhar um género de poesia cantada, que se caracterizava pela subjetividade e pela exposição emocional do eu: a poesia lírica. A partir da Poética de Aristóteles tornou-se comum a divisão da poesia em três modos distintos: a poesia épica, em que um narrador conta um história, a poesia dramática, que inclui todos os géneros teatrais, na qual são as personagens que falam, e a poesia lírica, na qual o poeta fala diretamente ao leitor ou ouvinte, representando diretamente a sua subjetividade. Note-se, de passagem, que esta divisão não impede a mistura dos vários modos numa mesma obra. Os sentidos que a palavra vai ganhando ao longo do tempo, com a sua expansão do território da poesia para o da música, mantêm uma ligação estreita às características definidoras da poesia lírica e ao imaginário mitológico de Orfeu, isto é, o canto e a exposição emocional do eu.
O elemento lírico irrompe na música como uma verdadeira revolução musical, por volta de 1600, com o advento da monodia, isto é, o canto solista com acompanhamento de acordes. E surge como uma tentativa de regresso aos ideais clássicos de simplicidade, clareza e beleza, típicos da antiguidade grega, como resposta à complexa racionalidade do contraponto renascentista. Sob o signo de Orfeu, esta inovação permite passar gradualmente duma simbólica do número a uma simbólica do sensível, que conduzirá a música para o caminho da teatralidade e da ópera. Doravante a evolução da história da música decorrerá da tensão dialética entre os conceitos aparentemente opostos de racionalidade e sensibilidade, entre a mathesis e os afetos, o técnico e o lírico.
Se, no início do período Barroco, com o nascimento da ópera, a arte lírica passa a referir-se à arte do canto, sobretudo o bel canto de origem italiana, com o início do romantismo o território do lírico expande-se consideravelmente e passa a abarcar também toda a música instrumental que privilegie a dimensão melódica. O período romântico é por excelência o período lírico, no qual, sob o ideal da unidade das artes, a música se apropria dos valores poéticos até aqui circunscritos à própria poesia. Além da abundante produção do género poético como o lied, desenvolve-se na literatura para piano a pequena peça melódica de carácter poético, como a canção sem palavras, o noturno ou a balada, nas quais predomina a subjetividade, a expressão do eu e a emoção. O lied, com as suas raízes na canção popular, tal como foi desenvolvido por Schubert ou por Schumann, inaugura um tipo de lirismo mais sóbrio do qual está ausente o lado acrobático do virtuosismo vocal operático, que acabará por influenciar os géneros instrumentais. A partir do momento em que o lirismo invade a música instrumental o próprio sentido do conceito de lírico se desvia do seu sentido vocal, para ser usado como sinónimo de melódico e de poético, e, em algumas aceções pode referir-se também a qualidades como a facilidade e a espontaneidade, bem como uma tendência para a simplicidade, e para um modo de expressão subjetivo que procura na imediatez dos sentimentos um modo eficaz de comunicação artística. Em síntese, o lírico pode ser conotado com a parte sensível da música. E por isso podemos, grosso modo, contrapô-lo ao racionalismo, à tendência para a complexidade e para o artifício. Aliás, é possível olhar para a história da música e para a evolução dos diferentes estilos como um movimento, sempre repetido, que vai do simples para o complexo. Ou seja, a génese de um novo estilo surge geralmente duma tentativa de simplificação e de depuração relativamente ao anterior, e essa passagem faz-se, em certa medida, através da revalorização do elemento lírico, seja no sentido melódico, emotivo, poético ou subjetivo.

É provável que os nomes de Ludwig Spohr (1784-1859), Max Bruch (1838-1920) ou Nino Rota (1911-1979), três dos compositores apresentados neste programa, não sejam conhecidos do público em geral. E de facto são consideradas figuras de segundo plano, e apesar de não terem trazido no âmbito da composição grandes mudanças à história da música, foram, todavia, músicos competentes e produziram obras de uma qualidade perfeitamente meritória, embora no geral o conjunto da sua obra seja irregular e desprovida de génio. Um traço visivelmente comum a estes três compositores é o seu inequívoco lirismo, a fertilidade da sua inspiração melódica. De resto, no nível formal e harmónico, foram, cada um na sua respetiva época, compositores de tendência conservadora, pouco dados a seguir as inovações que o seu tempo lhes ofereceu.
Além disso, foram músicos que se destacaram em outras áreas da atividade musical: Ludwig Spohr como reputado maestro, Max Bruch como professor de composição no Conservatório de Berlim, Nino Rota como um dos mais notáveis compositores para cinema, compôs a música para toda a filmografia de Fellini.
Com Franz Schubert (1797-1828) estamos no cume do lirismo. A sua inesgotável invenção melódica, associada a uma sensibilidade harmónica inédita, deu origem a uma coleção de cerca de seiscentas canções (lieder), bem como à criação de pequenas peças para piano de atmosfera lírica, as quais inauguram a nova era poética do romantismo.
Finalmente, Nuno Côrte-Real (n.1971) é um caso raro de lirismo na música contemporânea, não só pela busca da clareza e da simplicidade, mas também pela procura dum discurso que privilegia a emoção e pela sua proximidade com a poesia.
2 Momentos a Pessoa, com Pessoa, op.1, foi composta em 1995, ainda durante os anos escolares, com uma escrita hermética tipicamente académica, mas que deixa antever já alguns traços da abordagem emocional que o seu estilo posterior manifestará.

Afonso Miranda






|||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||